quarta-feira, 2 de junho de 2004

Metapress Revista Eletrônico:”Financiamento Imobiliário e o consumidor” Quarta-feira, 2 de junho de 2004 – 18h28

O Poder Executivo encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 3.065/04, para substituir as Medidas Provisórias nºs 2.160-25, 2.221 e 2.223, todas de 2001, porém mantendo alguns equívocos em relação à segurança jurídica de certas operações imobiliárias.

Com efeito, seria de se esperar que a alteração legislativa aperfeiçoasse o sistema atual, de modo a conferir maior segurança para todas as partes envolvidas no negócio imobiliário, quais sejam, financiadores, incorporadores, construtores e consumidores.

Tal não ocorre, sendo certo que o prejuízo ou o malefício de uma dessas partes importa ineficiência de todo o setor imobiliário, pois, se as regras são ruins para uma das partes, certamente a realização de negócios será prejudicada.

A ausência de segurança jurídica, que deveria ser proporcionada pelas mencionadas Medidas Provisórias em vigor, cujo vício se mantém no Projeto de Lei em questão, consiste na possibilidade de utilização do instrumento particular em duas situações específicas: no financiamento imobiliário garantido por alienação fiduciária e na hipótese de outorga do contrato definitivo de compra e venda por parte da Comissão de Representantes em sede de incorporação imobiliária, à qual foi instituído o regime patrimonial de afetação.

Além disso, o Projeto de Lei peca por manter, no âmbito dos financiamentos imobiliários no Sistema Financeiro da Habitação, a possibilidade de realização por meio de instrumento particular de compra e venda de imóveis, regra que fora introduzida no cenário jurídico brasileiro durante o período do Regime Militar (art. 61, § 5º, da Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964).

Em todas essas hipóteses, não há obrigatoriedade de lavratura de escritura pública, sendo utilizado o instrumento particular.

O sistema jurídico tradicional do Brasil, como aliás o de todos os países da Europa Continental, previa que todos os contratos de compra e venda de imóveis fossem realizados por meio de escritura pública. E qual o motivo de se exigir essa regra? Na verdade, são várias as razões, algumas das quais são intuitivas.

Inicialmente, é de meridiana clareza que o instrumento público confere uma maior segurança contra falsificações, pois não apenas há intervenção de um agente delegado do Poder Público (Tabelião), como o instrumento (escritura) fica, ao ser lavrado, registrado no Tabelionato, o que permite a qualquer pessoa para a qual tal instrumento for apresentado a conferência de sua veracidade material, mediante simples consulta ao Tabelionato.

Mesmo no tocante a falsificações de cunho ideológico (ex: alguém com documentos falsos se faz passar por outra pessoa para vender um imóvel que não é seu), o terceiro de boa-fé está mais protegido, se o instrumento for público, pois o Estado e o Tabelião podem responder objetivamente por falhas na prestação do serviço (art. 37, § 6º, da Constituição Federal e art. 22 da Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994). Tais garantias não existem quando o contrato é feito por instrumento particular!

Explico melhor: os particulares, segundo regra geral do Direito Civil, somente respondem por dolo ou culpa. Assim, se um advogado é procurado por um falsário para a elaboração de um instrumento particular, ele somente responderá se estiver em conluio com o falsário (dolo), se não tiver uma perspicácia mínima ou não adotar as cautelas compatíveis com a qualificação profissional, suficientes para detectar a fraude (culpa); ou, ainda, caso seja o próprio falsário o elaborador do instrumento particular, a conseqüência será a mesma: não haverá responsabilidade do Estado.

Nessas hipóteses, a parte inocente sofrerá o prejuízo, caso não consiga localizar o falsário e penhorar seus bens.

Mas não é só. Para a elaboração de uma escritura pública de compra e venda de um imóvel é necessária a apresentação de uma série de documentos, que muito longe de consistirem em mera “burocracia”, são fundamentais para a proteção do comprador.

Um desses documentos é a certidão atualizada da matrícula do imóvel, por meio da qual o Tabelião confere a situação jurídica do imóvel (ex: se o vendedor é o verdadeiro proprietário, se o imóvel se encontra penhorado etc).

Se a Encol e tantas outras empresas só pudessem vender imóveis por meio de escritura pública, as fraudes não teriam ocorrido com tamanha magnitude, ou nem mesmo teriam ocorrido, pois no momento da contratação os compradores iriam tomar conhecimento dos problemas que existiam (imóvel sem matrícula, imóvel penhorado, imóvel hipotecado etc), e com certeza não iriam concluir os negócios, pois o comprador comum somente compra um imóvel penhorado ou hipotecado se não souber da existência desses gravames!

Percebe-se, portanto, que a escritura pública tem o condão de impedir, no nascedouro, a realização de vários negócios inviáveis do ponto de vista jurídico. Tal não ocorre apenas em situações como a da Encol, mas também em várias outras, tais como, loteamentos irregulares, nos quais o registro do contrato é impossível e, por via de conseqüência, não irá o comprador adquirir a propriedade do lote.

Não será possível lavrar a escritura pública de um lote decorrente de um loteamento sem registro, pois para tanto é preciso apresentar a certidão do imóvel, que um lote irregular não tem.

Também em várias hipóteses de fraude à execução a lavratura de uma escritura pública fará o comprador ciente do risco de desfazimento do negócio, pois, ao obter a certidão do imóvel, constatará o registro da penhora, e assim verificará que a contratação é inviável.

Além disso, o instrumento público é elaborado por um profissional especializado, que domina uma técnica jurídica específica, apta a proporcionar uma proteção não apenas contra fraudes, mas também contra lacunas ou omissões que podem levar a litígios futuros.

Quando um contrato ou uma lei contém múltiplas possibilidades de interpretação, é natural que cada parte tenha a tendência de interpretá-lo da forma mais favorável para si, o que invariavelmente termina com a propositura de uma ação judicial.

Esse é um dos motivos pelos quais os contratos imobiliários realizados por meio de instrumento particular dão origem a um número proporcionalmente muito maior de ações judiciais do que os celebrados por instrumento público. O mais adequado para a pacificação social é, sem dúvida alguma, a realização do contrato por meio de um profissional especializado. Esse profissional é o Tabelião.

É verdade que os advogados especialistas em Direito Imobiliário e Registral também são tecnicamente preparados para atuar preventivamente nos negócios imobiliários, podendo (e devendo) assessorar as partes.

Mas a perspectiva de atuação de um e de outro não se confundem: o Tabelião deve velar pela legalidade estrita do ato sob uma ótica imparcial que é decorrente de seu caráter de agente público; já os advogados, embora também estejam vinculados à lei, são agentes parciais, pois cada um defende os interesses de seus clientes.

A atuação do Tabelião e dos advogados são complementares. O ideal seria que todos os negócios envolvendo imóveis fossem realizados por meio de instrumento público, bem como que cada uma das partes estivesse assessorada por um advogado especializado na matéria.

O Tabelião responde objetivamente por falhas nos seus serviços. Isso inclui, evidentemente, nulidades do negócio que decorram de vício inerente ao instrumento, as quais é dever do Tabelião evitar. Ou seja, com o uso da escritura pública, o consumidor está protegido também neste aspecto.

Outra questão fundamental é a relativa aos custos dos instrumentos público e particular. Imaginemos, por hipótese, que o instrumento particular não custasse nada, que ele fosse grátis: seria interessante, sob uma perspectiva social, mantê-lo em nossa legislação?

A resposta é certamente negativa, pois nós sabemos qual o custo de uma escritura pública, mas o custo da ausência dela (ou seja, o prejuízo decorrente da celebração de um negócio que se revelou inviável) é algo imprevisível.

Mas nem mesmo é possível dizer que o instrumento particular é gratuito ou mesmo mais barato. Muito pelo contrário, o que se tem observado na prática é que o instrumento particular é mais caro! Isso pode parecer estranho para as pessoas que não têm contato profissional com o mercado imobiliário.

Ocorre que as instituições financeiras, as construtoras, as incorporadoras e os advogados cobram pela realização do instrumento particular de compra e venda de imóveis financiados, e tais valores são na prática superiores aos emolumentos cobrados pelo Tabelião, pois enquanto este deve obrigatoriamente seguir uma tabela de custas aprovada por lei, os demais não estão sujeitos a qualquer limitação legal.

Neste ponto, poderia existir um questionamento: se o instrumento público é tão melhor que o instrumento particular, por que a legislação tem admitido cada vez mais o instrumento particular?

A resposta a essa pergunta deve ter como base uma outra pergunta: quem é beneficiado com o instrumento particular? Certamente não é o consumidor, que, no mais das vezes, não é profissional da área imobiliária e normalmente não conta com assessoria jurídica especializada.

As instituições financeiras, as incorporadoras e as construtoras é que são beneficiadas, pois mantêm uma assessoria jurídica permanente e podem redigir os contratos da forma mais favorável aos seus interesses.

Este aspecto merece ser destacado: contrato leonino só existe quando é redigido por uma das partes e o outro contratante não tem outra alternativa senão aceitar as regras estabelecidas, que não decorrem de sua vontade.

Já o Tabelião não tem qualquer interesse em incluir cláusula abusiva nos contratos que elabora, inclusive porque está sujeito à severa fiscalização da Corregedoria do Tribunal de Justiça. O Tabelião não pode descumprir a lei: não pode compactuar com a fraude em prejuízo de uma das partes ou de terceiros.

Aqui, novo destaque deve ser feito: temos observado, na prática, que a fiscalização da Corregedoria tem sido muito eficiente. Como se sabe, o Tabelião que descumpre as normas da Corregedoria está sujeito a várias penalidades, inclusive a perda da delegação!

Outro questionamento que pode ser feito é no tocante à legislação atual e os projetos em curso no Congresso Nacional não terem tornado obrigatória a utilização do instrumento particular, pois deixam a critério das partes a escolha quanto ao instrumento a ser utilizado. Na verdade, tal possibilidade de escolha é uma falácia.

A pessoa que depende da obtenção de um financiamento bancário para comprar um imóvel não tem opção alguma, aliás, nem mesmo tem a assessoria técnica necessária para poder fazer a melhor escolha sob o aspecto da segurança jurídica. O comprador apenas acata as determinações que lhe são impostas.

Mas, ainda que realmente houvesse uma possibilidade de escolha, nem mesmo assim seria conveniente que a lei permitisse a utilização do instrumento particular, pois a lei também existe para a proteção da parte mais fraca. Se assim não fosse, não haveria necessidade de leis como o Código de Defesa do Consumidor: bastaria deixar às partes a mais ampla “opção” para contratarem como quiserem.

Na verdade, sabemos que na prática o mundo não é assim: quando não há leis ou quando elas não são cumpridas, o que prevalece é a lei do mais forte. A ordem jurídica deve, sem dúvida alguma, buscar a proteção social, para que se possa ter uma sociedade mais justa e com menos desigualdades.

Diante desses aspectos, é necessário que a sociedade civil se mobilize em favor da modificação da legislação atual, especialmente do art. 61, § 5º, da Lei nº 4.380/64, bem como do Projeto de Lei nº 3.065/04, principalmente do art. 53 (que inclui o art. 31-F, § 4º, à Lei de Incorporações Imobiliárias) e do art. 57 (que modifica o art. 38 da Lei de Alienação Fiduciária de Bem Imóvel, ampliando a possibilidade de utilização de instrumento particular).

Evitar-se-á que os abusos continuem sendo praticados em detrimento do mercado imobiliário e, principalmente, do consumidor. Tornar obrigatória a realização de negócios imobiliários por meio de escritura pública é o mais aconselhável, sob o prisma da segurança jurídica, da proteção do consumidor e da pacificação social.

*Bruno Mattos e Silva, Advogado e autor do livro “Compra de Imóveis: aspectos jurídicos, cautelas devidas e análise de riscos”